quarta-feira, 2 de julho de 2014

AMOR AO PAI*

*Conto postado por um autor convidado. Amor ao pai foi escrito por Liliane Garcia.



                 I
         JÁ ERAM MAIS DE OITO HORAS quando, enfim, encontrei forças para levantar da cama. Da janela do meu quarto, eu podia ver as folhas caindo levemente de seus arvoredos. Essa era a época mais triste do ano, o outono, onde nada tende a germinar com a mesma esperança das outras estações do ano. Assim se sucede a vida humana. Naquela noite, eu nada dormira graças à repugnante ansiedade. Maldita energia cinética que faz as moléculas do meu cérebro ricochetear imagens da minha nova realidade. Mas afinal, de que adiantaria queixar-me? A doença não iria embora só porque me encontro fadigada.
          Fui diagnosticada com leucemia há poucas semanas e, às vezes, lembro-me de tudo que construí em silêncio e que não terei tempo de realizar. Os sonhos são leves como as folhas e encontram-se nos mais altos cumes onde os ventos podem derrubá-los.         
            Quando fui até a cozinha, percebi que meu pai ainda não acordara. Eu entendo a intensidade de seu enfastiamento. Depois do veredicto médico, ele largou o emprego, desde então se encontra ocupado comigo e com os afazeres da casa. Quanto a minha mãe, vive do luxo de benfeitores na zona sul de São Paulo. Não tenho contato com ela desde que nos abandonou há cinco anos. Mas se for de legitima importância, eu a perdoo. Meu tempo é demasiado escasso para remorsos.          
            Enquanto eu fazia o café da manhã, meu pai se levantara. Durante o tempo em que comíamos, observei nitidamente em seus olhos os lampejos de preocupação e dor. Ora, esses sentimentos eram meus, dessa vez o egoísmo dentro de mim era extremamente justo, ele não merecia sofrer por dois. Tentei faze-lo sorrir, contando histórias cômicas, mas fora em vão.           
– Pai, você não precisa ficar frustrado. Eu vou ficar bem. – murmurei.   
            Ao passo de não dizer uma palavra, levantou-se e me abraçou. Senti o coração disparar e assenti.
II
            Estávamos esperando na recepção do hospital até que me chamaram, apertei a mão do meu pai e respirei fundo, era chegada a hora da quimioterapia. Uma enfermeira robusta que aparentava ter seus quarenta e poucos anos me conduzira até a câmara de tortura, jamais percorrera um corredor tão extenso, era como seguir uma trilha; de nada adiantaria olhar para trás porque já era longe demais de onde partira. Levantei o olhar e entrei na realidade. Eis a hora da chacina.     
            Abri os olhos com demasiada dificuldade, sem encontrar forças para me levantar. Vi que estava deitada num leito sustentada por aparelhos que faziam bipe.  Tentei controlar a emoção quando não vi meu pai por perto, mas fora em vão, uma dor de cabeça terrível me deixara tonta ao tentar levantar. Minha visão estava falhando novamente, senti algo me puxando para trás, mas era só a fadiga me permitindo reencontrar o sono profundo.            
– Ah, minha menina! Finalmente acordou!  
            Levantei o olhar solenemente para distinguir quem falava comigo. Era o meu pai, senti um breve alívio por ele estar sorrindo.      
– O que está acontecendo? – balbuciei
– Você teve uma recaída durante a quimioterapia, não se recorda? – respirou fundo e continuou – bem, imagino que não, afinal você adormeceu por treze horas. Os médicos irão explicar mais afundo – correu-lhe uma lágrima no rosto após proferir a última oração, senti meu estômago embrulhar – eu a amo, querida.  Vai dar tudo certo, eu prometo.
III

            O médico acabara de chegar ao leito e com ele trouxe uma planilha. Vi inúmeras vezes cenas como essas em filmes, se não me engano, não significavam boas novas.       
– Como se sente? – perguntou o médico, me encarando de forma sórdida.
– Já estive melhor – respondi, examinando as diversas mangueiras coloridas que compunham minha pele agora.            
– Bom, como pode ter percebido você está na UTI, sua reação com os compostos orgânicos utilizados na quimioterapia não foram bem sucedidos. Quanto a isso, a companhia de oncologia do hospital analisa a situação para resultados efetivos na sua recuperação e...    
– Não percam tempo – interrompi – eu não quero viver desse jeito.         
– Como disse? – perguntou o médico com demasiada confusão.            
– Eu não quero mais me drogar. Se for pra morrer, eu aceito as condições e os termos. Onde eu assino?      
            O ilustre doutor deixou escapar um leve sorriso, mas logo percebera que se tratava de seriedade. Aparentemente nunca ouvira nada tão petulante assim, principalmente, provindo de uma adolescente de dezesseis anos. Manteve uma postura incógnita e, por minutos a fio, ele tentou me mostrar motivos para não desistir de tudo. Como eu estava na UTI, meu pai não pudera comigo ficar por muito tempo.  Nas normas do hospital só se admitia uma pessoa por vez, somente.        
            No dia seguinte, consegui coragem para contar minha decisão ao meu pai. A reação não poderia ser diferente, ele chorou e clamou a Deus o porquê de tudo aquilo. Partira o meu coração, entretanto, me ver morrendo aos poucos seria muito pior. Ele não podia arcar com as despesas do hospital, tampouco com os medicamentos. Meu organismo também não suportara as drogas, quanto mais logo adiante?  Depois de muita divergência, meu pai assentiu ao perceber a situação em que me encontrara, sem falar na intensidade das dores que, de hora em hora assolavam com ritmos cada vez mais agudos.      
            Deitada no leito sem a necessidade de aparelhos e segurando a mão do meu nobre herói, assim eu me permitira ficar durante meus últimos minutos. Aquele momento era único, pois não se tratava de uma despedida, eu apenas permiti que minhas folhas se esvaíssem. E repetia calmamente até cessar... Que o amava, o amava, o amo.