quarta-feira, 18 de dezembro de 2013

O HOMEM SEM ROSTO

by Francis Bacon
Three Studies For A Portrait Right

           FORA assim que amanhecera, naquele dia. Não por acaso, é normalmente em uma manhã, ainda ao leito, que algumas pessoas percebem-se diferentes dos outros dias, ou, até mesmo, da vida inteira. No caso de tal sujeito, ainda não tinha certeza de estar acordado.  Ao sentar-se na cama, não conseguira abrir os olhos, bocejar, ou mesmo respirar. Apalpava seu rosto e não havia nada além de uma grossa camada de pele maciça. A única coisa que o homem tinha no cume, eram os ouvidos, e, graças a eles, pode guiar-se pelo cômodo. O pobre enchapinado conflitou-se em pensamentos e, no tempo de um raio de segundos, imaginara tantas quantas possíveis explicações para o que lhe ocorrera. Suas mãos nada reconheciam em seu rosto pelo toque, pudera ser doença nas mesmas, ou quiçá de outros órgãos. Tudo era crível àquela altura. Tomado pelo desespero, deu-lhe a ideia de gritar, porém, também a boca lhe faltava.                
             O seu quarto era amplo e vazio. Os poucos cômodos do quarto estavam brandos e tranquilos diante do desespero do homem, estavam milimetricamente perfeitos em  silêncio e alvura. Para mais nada seus aprestos serviam, mesmo o grande espelho colado à porta já não refletia mais o seu ânimo, ou as estrelas florescentes grudadas no teto. Estava sozinho mais do que nunca, pois até a mobília que se assemelhava a sua personalidade, encontrava-se indisposta à sua nova condição. O homem notara, então, que, fosse qual fosse a razão para sua derrocada, precisaria de ajuda. Não tendo companhia em casa, ele teria de ser socorrido por qualquer um fora do lar, ainda que fosse por algum desconhecido. Prudentemente, em meio a dúvidas de sua atual aparência, depois de vestir-se às cegas, saiu cambaleando pela casa em direção à estante da sala para capturar um retrato, este servindo-lhe de identificação caso dessem a falta de uma. 
             O homem saiu de casa um pouco hesitante e, ao incidir no primeiro feixe de luz o qual lhe anunciava à vida lá fora, passou a ser observado por todos que, pelos corredores, transitavam. Somando-lhe a face sem rosto, a agônica criatura ainda não havia se apercebido – muito pela própria incapacidade de dimensionar as coisas desde o momento em que acordara –, de que também o seu corpo estava disforme. Seu tronco parecia encontrar os pés sem o intermédio de ossos, ou vértebras. Suas costas declivavam pelo traseiro e havia carne exposta. Vermelha era tudo que não fosse pele fria, ou esfumaçada. Para a maioria das pessoas, a imagem daquele homem era extremamente visceral. Havia até quem perdesse a consciência diante dele. De moldura voraz e chocante, o reflexo do homem  transmutava-se em dor física e mental. Era de tal violência o semblante do focinhudo que, na cabeça de muitos, aquela figura era possivelmente inimaginável. Ele tentava se aproximar de alguém que pudesse se compadecer de seu sofrimento e assisti-lo de alguma forma, porém todos os seus esforços eram em vão. Seu retrato em mãos, era completamente inútil, ninguém o reconhecia. Dois ou três não se espantavam notoriamente com a sua aparência, entretanto eram justamente esses os que mais o ignoravam.
by Francis Bacon
Three Studies For A Crucifixion
           Angustiado, o homem ensaiava no peito uma respiração cardíaca. Em consequência disso, sua fisionomia, o quanto pudesse ter uma, se metamorfoseava a olhos nus.  Quanto mais fincavam os olhos nele e tentavam extrair mais alguma forma, mais irreconhecível ele ficava. No entanto, não só os olhos, mas também o corpo dos observadores respondiam, ficavam mais transparentes. Em um certo momento, alguns compreenderam que para enxergar o homem, verdadeiramente, era preciso rumar-se aos descaminhos do pensamento, pois, com passar das horas, só o que o ele aparentava às vistas eram assomos abstratos.
               Contudo, ao final do expediente, toda aquela reação pusilânime dos transeuntes da galeria de arte, trouxe ao feitor daquele homem uma colocação considerável por parte de seu companheiro:          
          – Não pude deixar de reparar, caro amigo, o assombro no rosto das pessoas que por aqui passaram.  Deste vida a uma criatura que tu mesmo não podes determinar o que é. Talvez, só o que tenhas às mãos sejam algumas poucas defesas.          
             – Devo concordar, querido Lucian, a única coisa que posso dizer ao meu favor é que, diante de uma tela branca, o que pinto são sentimentos.  


domingo, 8 de dezembro de 2013

O DIA DA FUGA



* Pastiche do conto "A Missa do Galo", de Machado de Assis.
            DIZEM que a chave do sucesso está em saber esperar. Dizem também que quem ri por último, ri melhor. No caso de Conceição, esse riso foi dado em forma de choro, precisamente, no velório do seu, agora, finado marido. Uma doença chamada apoplexia foi a responsável pelo óbito “merecido”, dizia ela, do escrivão Meneses. Minha senhora, muito religiosa, sempre agradecia à santa, que lhe tem o nome, por tê-la impedido, acreditava, de fugir comigo, em uma véspera de Natal. A sucessão dos dias parecia confirmar a sua crença de que o Divino tanto a amava que lhe permitiu casar-se com quem vos fala apenas 3 meses depois da pretensa fuga.      
             Conceição, quando vira a talho de foice, reprimia-me: “o que seria de nós se fôssemos descobertos?! O que seria de minha mãe, do nome da minha família?!” Fato era que estávamos inconscientes de paixão. Conceição já não suportava mais as traições do finado e de fingir-se compreensiva. Contudo, seu pequenino coração somente encontrou algo semelhante à paz depois de encontrarmos o caminho dos jacintos e de eu tê-la prometido tirar-lhe da casa assombrada em que vivia. “Somente por isso o suporto”, dizia-me em rabiscos.       
            Era eu, na época dos disfarces, o escrevente juramentado de Meneses. Em oportunidade de trabalho, fui à casa dos recém-casados duas, ou três vezes, antes de notar em Conceição toda sua candura e, ao mesmo tempo, sua esperteza, coisa que muito admiro em uma mulher. Daí então, não demorou muito, uma de suas escravas começou a entregar-me bilhetes dela toda vez que ia à casa do escrivão. De início, tais bilhetes tratavam-se apenas de perguntas sobre o paradeiro do escrivão durante a noite,  depois, seguido de comentários, do arrependimento de ter se casado com o homem e, mais tarde, do porquê de não ter encontrado antes de Menezes um homem honrado como eu. Passamos então a nos encontrar todas as noites nas quais o seu, até então, marido, ia ao prostíbulo e sua mãe adormecia. As únicas que sabiam de nós eram as escravas, até porque, também nos encontrávamos no humilde jardim do logradouro, e eu somente podia entrar saltando o muro com a ajuda das serventes. Mesmo esses encontros no jardim só se iniciaram depois que Conceição exigiu de Meneses uma cópia da chave da porta que dava acesso direto a casa, pois ele sempre levava a chave consigo à noite quando saia, e a futura viúva “nem sequer podia andar pelo jardim”, quando, inquieta, não pegasse no sono.     
            Entretanto, nossos encontros, que já não se somavam muitos, diminuíram com a chegada de um agregado à pequena família de minha senhora. Conceição havia me proibido de ir vê-la sob quaisquer circunstâncias, tudo por conta do moçoilo, ainda que o marido não estivesse e fosse tarde, pois ela temia que o jovem se apercebesse de algum movimento no jardim da casa ou, um dia, por uma insônia qualquer, desse falta dela em seus aposentos, mesmo sabendo que ele jamais se atreveria a investigá-la em seu leito. Assim sendo, mantivemos contato apenas via escrita, não o mantendo em outra ocasião, senão na de quando ia encontrar o escrivão em sua residência.         
            Foi no ano de 1881, depois de checar se o escrivão estava em casa que, com cuidado, cheguei pelo portão da frente e chamei Conceição jogando pequenos galhos secos em sua janela e percebi que tinha ficado pálida ao me ver. As escravas colocaram-me para dentro da casa muito depressa e aflitas. Na minha cabeça, aquele estado de agitação das criadas devia-se ao fato de eu ter pedido entrada na residência, àquela hora da noite, pelo portão da frente e não mais pelo muro que dava acesso ao mirrado jardim da casa.  Como era o dia da fuga, achei que valeria a pena a ousadia.         
             No momento em que vi a dulcineia mulher esperando-me na copa, fui logo pondo-a em meus braços, afrouxando assim, sem querer, os cordões de seu roupão e desabotoando um pouco sua manga. Ela não teve nem tempo de corresponder aos meus carinhos e revelou-me logo a situação da sala da frente. O que estava certo era que, nas férias de natal, o jovem Nogueira voltasse para o seu lar, e, então, na primeira oportunidade, como àquela noite em que nem o Meneses e nem o aprendiz estariam em casa, fugiríamos. Aquilo que não esperávamos era que o garoto se decidisse por ficar alguns dias a mais, depois de dispensado do preparatório que cursava, para assistir à Missa do Galo na cidade, pois só conhecia a missa da roça. “Você tem que ir embora!”, disse. “Oh, céus! Isso só pode ser um castigo divino!”, choramingava. “Ora, vou, porém preciso de tempo para livrar-me das cousas que preparei para fuga, estão todas do lado de fora”, expliquei-lhe. “Santo Deus!”, sussurrou. Antes que o garoto pudesse notar nossas vozes, Conceição foi distraí-lo e garantir que saísse apenas quando a rua estivesse “toda em silêncio”. Este era o sinal mais garantido de que eu já havia partido levando tudo o que trouxera para não deixar nada a vistas.    
            Não sei bem como as coisas sucederam-se, havia momentos em que conseguia vê-la pela janela, enquanto me atarefava de apagar todos os rastros, conversando com o rapaz. Conceição, em verdade, parecia estar se divertindo e distraída, no entanto, reconhecia quando ria falsamente, e ela o fazia. “Em certo momento, tive até de empurrá-lo de volta à cadeira quando deu sinal de que iria se levantar”, falava, às vezes, com ar de temor, sem, entretanto, furtar-se de rir um pouco da situação. “A minha maior preocupação era mamãe. Eu sabia que, mesmo se fizéssemos barulho, do mais sutil ao mais escandaloso, aquele sono de pedra jamais se abalaria, porém, quando se trata de ouvir conversas, mamãe nunca ficava mais acordada!”, comentou aliviada como se fosse ontem o acontecido.          
            Uma coisa é certa, caros senhores, se não fosse a curiosidade boba de um adolescente, talvez a fuga arquitetada por Conceição e eu somente encontrasse as portas do nada. E ainda, D. Inácia e as escravas poderiam sofrer penas terríveis pela nossa traição. Todos sairiam perdendo. E tudo isso para quê? Se tão cedo nos livraríamos de Meneses, creio eu, que por intervenção divina. Na verdade, os adolescentes em questão éramos nós e não o imberbe Nogueira.