* Pastiche do conto "A Missa do Galo", de Machado de Assis. |
Conceição, quando vira a talho
de foice, reprimia-me: “o que seria de nós se fôssemos descobertos?! O que
seria de minha mãe, do nome da minha família?!” Fato era que estávamos inconscientes
de paixão. Conceição já não suportava mais as traições do finado e de fingir-se
compreensiva. Contudo, seu pequenino coração somente encontrou algo semelhante à
paz depois de encontrarmos o caminho dos jacintos e de eu tê-la prometido
tirar-lhe da casa assombrada em que vivia. “Somente por isso o suporto”, dizia-me
em rabiscos.
Era eu, na época dos disfarces, o escrevente juramentado de Meneses. Em oportunidade de trabalho, fui à casa dos recém-casados duas, ou três vezes, antes de notar em Conceição toda sua candura e, ao mesmo tempo, sua esperteza, coisa que muito admiro em uma mulher. Daí então, não demorou muito, uma de suas escravas começou a entregar-me bilhetes dela toda vez que ia à casa do escrivão. De início, tais bilhetes tratavam-se apenas de perguntas sobre o paradeiro do escrivão durante a noite, depois, seguido de comentários, do arrependimento de ter se casado com o homem e, mais tarde, do porquê de não ter encontrado antes de Menezes um homem honrado como eu. Passamos então a nos encontrar todas as noites nas quais o seu, até então, marido, ia ao prostíbulo e sua mãe adormecia. As únicas que sabiam de nós eram as escravas, até porque, também nos encontrávamos no humilde jardim do logradouro, e eu somente podia entrar saltando o muro com a ajuda das serventes. Mesmo esses encontros no jardim só se iniciaram depois que Conceição exigiu de Meneses uma cópia da chave da porta que dava acesso direto a casa, pois ele sempre levava a chave consigo à noite quando saia, e a futura viúva “nem sequer podia andar pelo jardim”, quando, inquieta, não pegasse no sono.
Entretanto, nossos encontros, que já não se somavam muitos, diminuíram com a chegada de um agregado à pequena família de minha senhora. Conceição havia me proibido de ir vê-la sob quaisquer circunstâncias, tudo por conta do moçoilo, ainda que o marido não estivesse e fosse tarde, pois ela temia que o jovem se apercebesse de algum movimento no jardim da casa ou, um dia, por uma insônia qualquer, desse falta dela em seus aposentos, mesmo sabendo que ele jamais se atreveria a investigá-la em seu leito. Assim sendo, mantivemos contato apenas via escrita, não o mantendo em outra ocasião, senão na de quando ia encontrar o escrivão em sua residência.
Foi no ano de 1881, depois de checar se o escrivão estava em casa que, com cuidado, cheguei pelo portão da frente e chamei Conceição jogando pequenos galhos secos em sua janela e percebi que tinha ficado pálida ao me ver. As escravas colocaram-me para dentro da casa muito depressa e aflitas. Na minha cabeça, aquele estado de agitação das criadas devia-se ao fato de eu ter pedido entrada na residência, àquela hora da noite, pelo portão da frente e não mais pelo muro que dava acesso ao mirrado jardim da casa. Como era o dia da fuga, achei que valeria a pena a ousadia.
No momento em que vi a dulcineia mulher esperando-me na copa, fui logo pondo-a em meus braços, afrouxando assim, sem querer, os cordões de seu roupão e desabotoando um pouco sua manga. Ela não teve nem tempo de corresponder aos meus carinhos e revelou-me logo a situação da sala da frente. O que estava certo era que, nas férias de natal, o jovem Nogueira voltasse para o seu lar, e, então, na primeira oportunidade, como àquela noite em que nem o Meneses e nem o aprendiz estariam em casa, fugiríamos. Aquilo que não esperávamos era que o garoto se decidisse por ficar alguns dias a mais, depois de dispensado do preparatório que cursava, para assistir à Missa do Galo na cidade, pois só conhecia a missa da roça. “Você tem que ir embora!”, disse. “Oh, céus! Isso só pode ser um castigo divino!”, choramingava. “Ora, vou, porém preciso de tempo para livrar-me das cousas que preparei para fuga, estão todas do lado de fora”, expliquei-lhe. “Santo Deus!”, sussurrou. Antes que o garoto pudesse notar nossas vozes, Conceição foi distraí-lo e garantir que saísse apenas quando a rua estivesse “toda em silêncio”. Este era o sinal mais garantido de que eu já havia partido levando tudo o que trouxera para não deixar nada a vistas.
Não sei bem como as coisas sucederam-se, havia momentos em que conseguia vê-la pela janela, enquanto me atarefava de apagar todos os rastros, conversando com o rapaz. Conceição, em verdade, parecia estar se divertindo e distraída, no entanto, reconhecia quando ria falsamente, e ela o fazia. “Em certo momento, tive até de empurrá-lo de volta à cadeira quando deu sinal de que iria se levantar”, falava, às vezes, com ar de temor, sem, entretanto, furtar-se de rir um pouco da situação. “A minha maior preocupação era mamãe. Eu sabia que, mesmo se fizéssemos barulho, do mais sutil ao mais escandaloso, aquele sono de pedra jamais se abalaria, porém, quando se trata de ouvir conversas, mamãe nunca ficava mais acordada!”, comentou aliviada como se fosse ontem o acontecido.
Uma coisa é certa, caros senhores, se não fosse a curiosidade boba de um adolescente, talvez a fuga arquitetada por Conceição e eu somente encontrasse as portas do nada. E ainda, D. Inácia e as escravas poderiam sofrer penas terríveis pela nossa traição. Todos sairiam perdendo. E tudo isso para quê? Se tão cedo nos livraríamos de Meneses, creio eu, que por intervenção divina. Na verdade, os adolescentes em questão éramos nós e não o imberbe Nogueira.
Era eu, na época dos disfarces, o escrevente juramentado de Meneses. Em oportunidade de trabalho, fui à casa dos recém-casados duas, ou três vezes, antes de notar em Conceição toda sua candura e, ao mesmo tempo, sua esperteza, coisa que muito admiro em uma mulher. Daí então, não demorou muito, uma de suas escravas começou a entregar-me bilhetes dela toda vez que ia à casa do escrivão. De início, tais bilhetes tratavam-se apenas de perguntas sobre o paradeiro do escrivão durante a noite, depois, seguido de comentários, do arrependimento de ter se casado com o homem e, mais tarde, do porquê de não ter encontrado antes de Menezes um homem honrado como eu. Passamos então a nos encontrar todas as noites nas quais o seu, até então, marido, ia ao prostíbulo e sua mãe adormecia. As únicas que sabiam de nós eram as escravas, até porque, também nos encontrávamos no humilde jardim do logradouro, e eu somente podia entrar saltando o muro com a ajuda das serventes. Mesmo esses encontros no jardim só se iniciaram depois que Conceição exigiu de Meneses uma cópia da chave da porta que dava acesso direto a casa, pois ele sempre levava a chave consigo à noite quando saia, e a futura viúva “nem sequer podia andar pelo jardim”, quando, inquieta, não pegasse no sono.
Entretanto, nossos encontros, que já não se somavam muitos, diminuíram com a chegada de um agregado à pequena família de minha senhora. Conceição havia me proibido de ir vê-la sob quaisquer circunstâncias, tudo por conta do moçoilo, ainda que o marido não estivesse e fosse tarde, pois ela temia que o jovem se apercebesse de algum movimento no jardim da casa ou, um dia, por uma insônia qualquer, desse falta dela em seus aposentos, mesmo sabendo que ele jamais se atreveria a investigá-la em seu leito. Assim sendo, mantivemos contato apenas via escrita, não o mantendo em outra ocasião, senão na de quando ia encontrar o escrivão em sua residência.
Foi no ano de 1881, depois de checar se o escrivão estava em casa que, com cuidado, cheguei pelo portão da frente e chamei Conceição jogando pequenos galhos secos em sua janela e percebi que tinha ficado pálida ao me ver. As escravas colocaram-me para dentro da casa muito depressa e aflitas. Na minha cabeça, aquele estado de agitação das criadas devia-se ao fato de eu ter pedido entrada na residência, àquela hora da noite, pelo portão da frente e não mais pelo muro que dava acesso ao mirrado jardim da casa. Como era o dia da fuga, achei que valeria a pena a ousadia.
No momento em que vi a dulcineia mulher esperando-me na copa, fui logo pondo-a em meus braços, afrouxando assim, sem querer, os cordões de seu roupão e desabotoando um pouco sua manga. Ela não teve nem tempo de corresponder aos meus carinhos e revelou-me logo a situação da sala da frente. O que estava certo era que, nas férias de natal, o jovem Nogueira voltasse para o seu lar, e, então, na primeira oportunidade, como àquela noite em que nem o Meneses e nem o aprendiz estariam em casa, fugiríamos. Aquilo que não esperávamos era que o garoto se decidisse por ficar alguns dias a mais, depois de dispensado do preparatório que cursava, para assistir à Missa do Galo na cidade, pois só conhecia a missa da roça. “Você tem que ir embora!”, disse. “Oh, céus! Isso só pode ser um castigo divino!”, choramingava. “Ora, vou, porém preciso de tempo para livrar-me das cousas que preparei para fuga, estão todas do lado de fora”, expliquei-lhe. “Santo Deus!”, sussurrou. Antes que o garoto pudesse notar nossas vozes, Conceição foi distraí-lo e garantir que saísse apenas quando a rua estivesse “toda em silêncio”. Este era o sinal mais garantido de que eu já havia partido levando tudo o que trouxera para não deixar nada a vistas.
Não sei bem como as coisas sucederam-se, havia momentos em que conseguia vê-la pela janela, enquanto me atarefava de apagar todos os rastros, conversando com o rapaz. Conceição, em verdade, parecia estar se divertindo e distraída, no entanto, reconhecia quando ria falsamente, e ela o fazia. “Em certo momento, tive até de empurrá-lo de volta à cadeira quando deu sinal de que iria se levantar”, falava, às vezes, com ar de temor, sem, entretanto, furtar-se de rir um pouco da situação. “A minha maior preocupação era mamãe. Eu sabia que, mesmo se fizéssemos barulho, do mais sutil ao mais escandaloso, aquele sono de pedra jamais se abalaria, porém, quando se trata de ouvir conversas, mamãe nunca ficava mais acordada!”, comentou aliviada como se fosse ontem o acontecido.
Uma coisa é certa, caros senhores, se não fosse a curiosidade boba de um adolescente, talvez a fuga arquitetada por Conceição e eu somente encontrasse as portas do nada. E ainda, D. Inácia e as escravas poderiam sofrer penas terríveis pela nossa traição. Todos sairiam perdendo. E tudo isso para quê? Se tão cedo nos livraríamos de Meneses, creio eu, que por intervenção divina. Na verdade, os adolescentes em questão éramos nós e não o imberbe Nogueira.
Rapaz, que show seu texto. Fantástico, estou admirado e extasiado, me deliciei muito. Primeiro, quando me indicastes, fui reler com detalhe e pormenores o belíssimo e clássico conto de Assis. E vejo que fizestes um pastiche de forma bem original, um ponto de vista que eu não imaginava. Parabéns! Estás no caminho certo, o das letras!
ResponderExcluirMuito obrigado, James Wilker! Sinto-me contente em diverti-lo. Abraços!
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